domingo, 8 de abril de 2018

Pátria, mãe, nunca gentil: uma reflexão sobre a perda de uma valorosa guerreira


Pátria, mãe, nunca gentil, ódio a um hino tão mentiroso e manchado.

Escrevo hoje obedecendo o chamado de um eco. Um eco triste na noite. Um eco que machuca  a quem sabe que ferir machuca, que ferir dói. Que sangra... e que mata. Escrevo, como um desconhecido, mas que sente na pele o que é ser silenciado. Desprezado, espancado pela pátria, mãe, nunca gentil por permitir tal ato. Ela tem culpa sim, e a culpa vem de muito tempo.

Vem da absurda ação de um bando vil de colonizadores que pensavam ter razão em escravizar povos distintos, livres, de belezas e raízes verdadeiras. Hoje, aos olhos de muitos, são pessoas consagradas por suas “conquistas”, são heróis comemorados pelos sonhos que continuaram a construir: Um tombadilho cada vez mais dantesco. Imagine você em sua casa, a mãe lendo um jornal, o pai também, você está em seus afazeres e, de repente, algo dentro da casa, um barulho, vozes que não conhece, você procura ver quem são: pessoas estranhas, estranhíssimas, você nunca as viu na vida, entretanto percebe que suas fardas dizem muito. Elas dizem que ninguém na casa tem direito: ah, mas eu fiz a minha parte, eu paguei os impostos, o pai dirá, eu sou cidadão de bem, não sou qualquer psicopata ladrão, e a resposta, um tapa. O homem fica desmoralizado, a mulher tenta lutar, e a família vai para uma cela onde em ultima instância, descobrirá que é pior que gado, que não terá direito à sua casa, à sua morada de raízes distantes no tempo. E os advogados são chamados, mas para um juri viciado, você, mesmo justo e honesto como se diz, será sempre mais um culpado.  E você e tantos outros trabalham forçados. E você sai daquela bolha em que tudo estava bem e que o bar aos fins de semanas e as festas no de  período eram uma bem-vinda realidade. Não, o novo vem ali na frente e te arrasa.

Foi esse novo que veio aos povos mais belos desse mundo. Povos de príncipes, reis e princesas reduzidos a escravos. O novo te assusta; vem esse novo e te mostra belezas de coisas alheias a seu mundo; o novo mostra a ti a doença que não conhecia, o açoite que nunca experimentara, a pólvora que seu corpo sente arder; o novo te escraviza, te fere... e se não obedecer ao novo, ele te mata. Como celebrar o início de algo gentil quando o novo, a evolução de um país e sua história começaram com um ponto de exclamação ensanguentado: a Escravidão.

Se acaso sentir espécie, gastura desta palavra e do que ela representa, entendendo que cores de peles são diferentes e que, entretanto, elas são um empoderamento da alma por igual (somos todos sujeitos merecedores deste mesmo espaço mundo), então, estaremos, você e eu, no caminho certo. O caminho de sentir muita dor. Uma dor de nove tiros em todos os nossos pensamentos que buscam por igualdade. Um caminho de lutar contra uma cultura opressora. É o caminho que cassetetes sangram e que cavalos bosteiam corpos no chão. O animal não tem culpa de nada, o comando vem de cima... sempre de cima.

A questão do ser humano, como vivente, como pessoa, como alguém que sorri, como alguém que chora, e sente, e realmente sente, e foi um dia um bebê, que por trás de sua pele tem uma família, tem o lar que é esta Terra. Essa questão é apagada assim como as redes sociais também gostam de apagar hoje em dia a maioria esmagadora dos sujeitos.  Então o benefício próprio vem antes, não importando quantas cabeças. Todavia pensar que elas rolem e se enterrem em algum campo de despejos tristes, é um engano muito infantil.
Tornam-se, assim que são desviadas do caminho de suas vidas, sementes. E estas sementes fecundam um solo que punge vida. Esta gritará como nunca o mesmo que foi pensado e lutado por aquela semente, esta sim, mãe gentil, passará de raízes a galhos toda a sua sabedoria e, para desgosto do lenhador,  a árvore que tão duramente teve de suar para ralar, multiplicou-se.

Amizade, a luta não tem fim, amizade. A luta contra o ódio começa bem cedo: com o seu colega justificando deixar o lixo na mesa ou no chão, porque terá quem limpe; com os rótulos e as fantasias que na infância são ensinados a tratar o pobre, o paupérrimo, o negro, o "diferente"; com a nossa pátria, mãe, nunca gentil que não vê a miscigenação de um povo tão plural nem mesmo em seu hino.

É com nove tiros num carro levando uma guerreira que fez seu caminho saindo das raízes direto da favela para o mundo em busca de vidas melhores para os seus, que nos comovemos e pensamos e, pior de tudo, realmente temos total segurança de dizer que não há gentileza no país em que vivemos. A constante mudança do polo humanitário para o polo empresarial (entenda-se capitalismo fascistóide em sua mais pura essência), tem levado vidas, arruinado famílias e destruído sonhos. As vidas de pessoas como Marielle, que lutava contra o descaso nas favelas, contra a repressão policial e a doutrinação da hegemonia branca. Contra a tomada dos direitos que o povo pessoas de carne e osso, não plutocratas cujo maior amor é o dinheiro; ou religiosos cuja doutrinação atravessa os limites da razão. Mas a mente do homem muitas vezes é pequena, torna-se fácil a sua manipulação, principalmente quando ele é fomentado pela ilusão de que a ciência, a filosofia, o pensar diferente, o sair da caixinha de pandora entorpecida de hóstias podres, são crimes passíveis de tortura e morte.

Uma belíssima guerreira se foi, sim, mas não seu ideal. Marielle deixou uma mensagem como Vladimir Herzog, também, quando foi assassinado: que a intolerância, a bomba, a borracha, o colarinho branco, os engravatados vontades hediondas, os juízes desprovidos da magia que estudaram para dar luz aos injustiçados e a mídia plutocrata, fútil, alienadora e vilã dos direitos humanos, devem ser derrotadas, e serão derrotadas, pois acreditavam que enterrariam um ideal, não sabiam que este ideal seria semeado por quem está do lado certo.  O lado da humanidade.

Avante, luzes da humanidade, brilhem e semeiem o bem. Brilhem a vontade de uma mulher incrível que foi tirada de maneira ignóbil de sua vida. Ela foi retirada de sua paz, e por ela e tantos outros, devemos zelar por um país de paz. A luta é com medo de cair, mas sem medo de lutar como ela, que contra todas as impressões e paradigmas sociais da alta burguesia, ergueu-se, lutou e conquistou muito mais do que um lugar como vereadora da cidade maravilhosa. Marielle Franco é um verdadeiro ideal, e um verdadeiro nunca morre, apenas se fortalece.

Apenas um texto, em homenagem a uma mulher que deverá ser lembrada por toda a história do mundo enquanto ele for mundo.

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